quarta-feira, 24 de outubro de 2007

a mãe a terra e o mar

image by Nathan Thomas Jones

descanso em terra
em terra boa. quente
colo de mãe disposta a embalar
saio das lutas que vivi. de frente
com o alívio de quem ouviu o mar

hoje sou pequenina
hoje posso. hoje tenho o direito a regredir
ao colo tenho um ausente filho
tão presente
coisas de mãe a nunca abandonar

ele ao meu colo ou eu ao colo dele?
um dia tudo se há-de confundir
e isso é bom. isso é viver de gente
no colo de terra , dou comigo a rir!

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

é a hora!

image by willow green


fome de renascer. como o sol dia após dia se levanta

esquecer toda a mentira. esquecer até quem fui ou sou agora

recomeço.

o meu cérebro é bipolar e eu gosto disso. acelera. trabalha sem parar

quando se cansa entristece e eu com ele

ficamos cérebro e eu a vaguear histórias reais que deixámos para trás

a acontecer sem nós

silêncios que nos impusémos por respeito a convicções maiores

do que a nossa vontade de gritar: é falso!

mas a falsidade não muda de lugar com a nossa tristeza

a falsidade cresce

toma o silêncio do meu cérebro e meu por concordância

e espera que não acordemos mais do desencanto

falha grave

somos lúcidos. nada em nós passa a barreira de som

em termos de loucura

esperamos no sofá da existência a certa hora para atirar

tempestades lunares de encontro a quem nos desabrigou

por cobardia

sinto a hora a chegar. o alívio repousa mais que o sono

como o volante da "ode marítima" acelera o motor amado

do meu cérebro recheado a lucidez


renasço.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

cruzados. braços.

image by SuDeK


enlaços. traços. regaços. tudo foram estes braços de quem nunca quis parar.

desembaraçaram matos. foram serras e machados. mãos em sangue tanta vez.

mas abriam os caminhos. depois abriam-se aos filhos e ao amante imaginado. abriam-se lado a lado

para se fechar outra vez envolvendo de amor casto. quente e humano e sagrado em redor dos bem-amados.



image by Akif [Hakan] Celebi


hoje, braços enrugados, meio inúteis e cansados cerram-se em volta de si.

não há sonhos. não há laços.

"alegria de viver"? - mas falta viver o quê?

que é que esses braços deixaram escorregar pelo caminho?

se muita coisa perderam, deram demais tanta vez!

o perdido que lá fique. alguém o encontrará - outros braços com regaços...

ela já não quer mais laços. é hora de descansar. é hora de ouvir o mar.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

"É fome, senhor."

image by mojalewastopa

é jovem demais o tempo para tanto peso de mau futuro carregar. e no entanto é esse tempo que me bate à janela. baixo. baixo. num timido gesto de ninguém rejeitar.

a cadela corre para mim em ladrido insistente. será que sabe, será que sente?

não silencia até eu ir abrir. o jovem-tempo não.

cedo demais para tanto pesar nos olhos que me fitam por trás das grades que, antes de mim, alguém quis nas janelas.

aprisionada no conforto de um lar sem fome ainda, pergunto: como vai?

responde agradecendo o que não recebeu. desculpa-se. treme. dou-lhe um cigarro. acalma. conversamos um pouco.

- não tem um comprimido. um só para eu dormir uma noite sossegado. oiço rádio até amanhecer. não sei o que é dormir. há tantas noites já!

- jantou?

- hoje já. sim. - sorri e agradece mais.

publicito-lhe o médico de familia e dou-lhe um calmante leve.

- entenda. disto eu não volto a dar-lhe.

para dentro de mim penso no que trazer quando for às compras do indispensável, já a contar com ele.

- vou ao médico, vou. tenho direito. tenho lá o cartão.

o meu irmão... disso já lhe falei. desculpe. não que eu lhe tenha raiva. não é isso. ele até me ajudava... mas ir assim para Angola sem sequer um abraço. a gente pode não se voltar a ver.

- não pense nisso agora.

- não. mas era só um abraço...

a fome, que hoje por acaso não tinha, ele suporta. já o abandono...

sinais dos tempos.

o verbo haver tem muitas mais formas de se conjugar que qualquer outro que aprendi na escola.




* à memória do meu Pai que me ensinou a repartir o pão e o sorriso sem medo que se esgotem e um dia não venham a bastar-me a mim. obrigada, Paizinho!

terça-feira, 14 de agosto de 2007

sei dois desertos

empty-sand at desert-voice.

o deserto de areia toda a gente o conhece quer o tenha visto alguma vez ou não. há em fotografia ou na imaginação de quem calcula um areal aparentemente infidável a cercá-lo. atrai e mete medo. os medos são da vida. vencidos os medos a vida ganha brilho. a vida cresce e é para se viver. mas só aí. até vencer os medos fica-se parado a olhá-los como os navegadores olhavam o rochedo gigante que lhes parecia um monstro, na distância.


by Charles Cooper

por mim, temi o mar sem deixar de o fitar. era demasiada a atracção. apetecia-me invadi-lo. entrar-lhe dentro a todos os mistérios. morrer nele se fosse caso disso (não sabia nadar), mas encontrá-lo na sua verdade cheia de história. o mar era a minha tentação.

confessei-me uma vez na vida e arrependi-me, mas nem esse pecado de ser amante do mar eu contei senão hoje. felizmente houve mais pecados que omiti. é pena que não se possa ver agora o meu sorriso de vitória.

quem prega que um adolescente é fácil de manipular não pensa no que diz. o adolescente manipula até ter o que quer. às vezes quer errado. mas é isso que é adolescer. manipular é arte dele, não de adulto. no adulto fica o tique ganho na adolescência, ou perde-se na areia do tempo...

outro segredo que desvendámos hoje: a força da adolescência é quase igual à das ondas mais fortes do deserto do mar. não é ao acaso que um jovem as desafia em desportos cada dia mais adentro dessas mãos brancas de espuma.

tal como eu. tal como eu queria entrar pelo mar adentro. abrir caminhos lá.

no final, fiquei na areia. à espera.
até chegar quem tinha de chegar.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

ódio ou medo?

by Xavier Ceccaldi.


odeia-se quem se teme*

ou o que se teme podia eu dizer. daí o ódio à morte. não faz nenhum sentido mas é um dos maiores. odeia-se o que se desconhece e teme-se pela mesma razão. depois de conhecido será ainda inimigo mas também mais um camarada com que se lida de maneira diferente. sem amor mas não necessariamente com ódio já.

uma carcaça. mesmo não sendo a de nenhum amigo, arrepia os mais frágeis. lembra talvez a própria quando o tempo passar. (ah a imaginação!) medo de ser aquilo. de ser aquilo só. sem músculo a cobrir. sem pele a poder receber ainda uma carícia e a senti-la.

da morte tem-se mais medo que da vida e, no entanto, na morte não há perigo nenhum. na vida sim.

comecei pela morte este blog sobre Vida ou o seu segredo, ou nada (sei lá eu o que é que vou parir!). mas há lá melhor que começar pelo mais difícil? o resto, o resto há-de vir a seguir.



*Énio